Uma metamorfose ideológica mapeada a partir da análise de mais 1,5 mil discursos de Jair Bolsonaro. Publicado este ano pela Revista Sociologia e Política, o estudo “Nomeação, significação e representação: uma abordagem pós-fundacionalista para a gênese do bolsonarismo” apresenta como o então deputado federal do baixo clero ajustou o seu discurso para se tornar uma liderança nacional com amplo apoio dos eleitores.
Produzido por Mayra Goulart da Silva (UFRJ), Tayná Lima Paolino (UFRRJ) e Vítor Melo Medeiros (UFRJ), o estudo utiliza uma metodologia sofisticada, em que combina análise de discurso com indicadores do Comparative Manifesto Project (CMP) para medir a frequência e a dispersão de temas mais utilizados por Bolsonaro, em seguida posicionando-os no espectro ideológico. Segundo a pesquisa, em quase 30 anos de vida pública, Bolsonaro recorreu a discursos que variaram da defesa direitos dos militares e suas famílias, passando pela admiração da ditadura militar até chegar à defesa de uma concepção punitivista de ordem e sociedade, sendo estes últimos estruturados a partir de um antagonismo do cidadão do bem. Dessa forma, mesmo que tenha buscado mais moderação nos programas de governo nas disputas presidenciais, o índice CMP identificado pelas autoras para Bolsonaro se posiciona na extrema-direita, superando, inclusive, casos como o de Donald Trump (2016) e Viktor Orbán (2018).
Em entrevista ao blog Conjuntura Política, as pesquisadoras explicam a metodologia aplicada e algumas das principais conclusões do trabalho. Na avaliação das autoras, “embora Bolsonaro se destaque pelo extremismo, ele pode ser comparado, em termos ideológicos, a lideranças internacionais, por fazer parte de um movimento mais amplo que ganhou espaço nas democracias ocidentais desde meados da década de 2010”. Esse movimento seria caracterizado, principalmente, como “neofascismo, populismo de direita, populismo autoritário e populismo reacionário”.

Vocês identificaram uma transformação na trajetória política de Bolsonaro, que passou de um representante de demandas específicas dos militares (corporativas) para um líder capaz de articular diferentes grupos sociais. Quando ocorreu esse ponto de virada e quais fatores políticos ou ideológicos impulsionaram essa transformação?
O ponto de transformação na trajetória política de Jair Bolsonaro se dá no período entre 2010 e 2014, precisamente durante seu sexto mandato parlamentar. Até então, Bolsonaro atuava como representante de demandas prioritariamente corporativas dos militares, com centralidade quase absoluta na categoria militares, tanto em termos salariais quanto de reconhecimento simbólico. Contudo, a partir desse ciclo, observamos a emergência e posterior predominância de outras categorias discursivas como elites pré-democráticas, moralidade tradicional e lei e ordem. Essas categorias marcaram uma mudança no conteúdo temático dos discursos e, sobretudo, indicavam a ampliação do leque de sujeitos sociais interpelados por sua fala.
Essa mudança se deu também em razão de eventos políticos?
Sim. A transformação foi impulsionada por eventos importantes, como a reformulação do Plano Nacional de Direitos Humanos e a instalação da Comissão Nacional da Verdade, que abriram feridas da transição democrática e mobilizaram setores conservadores e militares em torno de uma pauta revisionista da história. Ao se posicionar como voz dissonante em relação a essas iniciativas, Bolsonaro reposiciona seu discurso, articulando novas demandas e se apresentando como liderança de um campo ampliado, formado por militares, policiais, evangélicos, conservadores morais e antipetistas em geral. Esse processo coincidiu ainda com o aumento de sua visibilidade na mídia tradicional e com o fortalecimento de redes digitais da nova direita, evidenciando a convergência entre conjuntura institucional e estratégias discursivas para a ampliação de sua base social.
O artigo aponta o antagonismo ao PT como um “ponto nodal” na formação do sujeito político bolsonarista. Como esse antipetismo conseguiu unir grupos tão diversos, desde militares e policiais até evangélicos e liberais econômicos? Esse fenômeno tem precedentes na política brasileira?

Nosso trabalho opera uma hipótese, baseada na teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, quanto à formação de sujeitos políticos em que a dinâmica da equivalência tem papel central. Partimos da premissa de que grupos sociais em geral são estabilizados simbolicamente por identidades coletivas, como “militar”, “policial” e “evangélico”, que não têm significados intrínsecos, mas ganham sentido por relações que estabelecem com outras identidades. Nessa chave, o processo político por excelência é o que trabalha a articulação entre essas identidades, de modo que elas podem ser representadas por um mesmo significante. No caso da razão populista, desenvolvida posteriormente por Laclau, e a partir da qual analisamos o caso do bolsonarismo no Brasil, esse trabalho de articulação se dá em torno de um líder que representa aqueles que são “excluídos” por aqueles que ocupam o poder.
Vocês poderiam explicar melhor como articularam a análise com essa teoria?
A teoria supõe que os elementos da significação se constituem de maneira relacional e essas relações devem constituir algum “todo” estruturado, caso contrário, não haveria produção de significado. Nesse processo, identidades ganham significado a partir de diferenças estabelecidas no interior dessa totalidade. A diferença também tem um papel central no fechamento da totalidade, porque é a partir dessa relação negativa que a identidade total pode se constituir. Nesse sentido, o ponto nodal, categoria analítica da teoria de Laclau e Mouffe, é um significante excluído desse todo de modo que pode converter suas diferenças internas em equivalências, processo crucial na formação de uma identidade coletiva. Tanto a relação entre as identidades que se tornam equivalentes quanto a diferença específica do ponto nodal não existem a priori, mas são costuradas no próprio processo de articulação. Nessa perspectiva, esse processo não é próprio do populismo de extrema-direita, nem mesmo do populismo em geral, mas algo central da formação de qualquer identidade coletiva na política. Na política brasileira, os projetos majoritários bem-sucedidos no século XXI precisaram construir relações de equivalência entre uma diversidade de identidades, e se valer de um ponto nodal para produzir essa equivalência. Por exemplo, o PT mobilizou relações de equivalência entre suas bases históricas, como trabalhadores sindicalizados, intelectuais, movimentos sociais, e bases eleitorais mais amplas, como outros partidos de esquerda, elites locais, lideranças parlamentares, para obter sucesso eleitoral. No caso das eleições de 2022, o significante bolsonarismo teve papel em estabilizar o significante democracia mobilizado na campanha.

O artigo caracteriza Bolsonaro como um “populista de extrema-direita”. O que significa essa classificação dentro da teoria que vocês utilizam e como o fenômeno brasileiro se compara com movimentos similares em outros países? O bolsonarismo representa algo novo no cenário político brasileiro ou mundial?
A metodologia de análise de conteúdo que usamos, o Comparative Manifesto Project, oferece a possibilidade de realizar o posicionamento de textos políticos no espectro ideológico, a partir de um índice chamado Rile. O índice vai de 100 a -100, sendo que os textos que têm como resultado valores positivos estão à direita no espectro ideológico e vice-versa. No caso de Bolsonaro, analisamos o Ir. dos discursos proferidos em Plenário ao longo dos seus mandatos como deputado federal, bem como dos seus programas de governo em suas duas candidaturas à Presidência da República. Ao longo de seus mandatos como deputado, o Ir. do agregado dos discursos resultou, todas as vezes, em valores acima de 90, indicando uma tendência ideológica à extrema-direita. Os programas de governo mostraram um processo de moderação, mas ainda assim, em termos internacionais, o caráter extremista de Bolsonaro se destaca mesmo frente a outras lideranças como Donald Trump, cujo programa de 2016 alcançou um Ir.de32 e Viktor Orbán, que na eleição de 2018, apresentou um programa com Ir.35.
De que maneira Bolsonaro se assemelha ou se diferencia dessas lideranças?

Embora Bolsonaro se destaque pelo extremismo, ele pode ser comparado, em termos ideológicos, a essas lideranças internacionais, por fazer parte de um movimento mais amplo que ganhou espaço nas democracias ocidentais desde meados da década de 2010. Esse movimento já foi caracterizado como neofascismo, populismo de direita, populismo autoritário e populismo reacionário. Nós utilizamos o termo populismo de direita por afinidade com essa lente teórica. No entanto, identificamos no bolsonarismo algumas singularidades contextuais, como a ênfase no papel da Polícia Militar na segurança pública e no saudosismo para com a ditadura militar. Isto não implica, contudo, em uma ruptura ou descolamento com o movimento internacional. Ao contrário, observamos sua sinergia e articulação com as personalidades do campo. Em termos discursivos, isto se expressa pela ênfase na tradição, por uma visão de mundo hierárquica e por um discurso moralizante e punitivista. Além disso, através dessa lente teórica, argumentamos que o bolsonarismo compartilha com a extrema-direita global uma estrutura similar marcada pelos elementos que configuram o populismo de direita enquanto thin ideology como caracterizam Cas Mudde, Rovira Kaltwasser e outros. Essa estrutura organiza os conteúdos discursivos em três macrocomponentes: o people centrism, o maniqueísmo e o anti-elitismo que implicam na apresentação do líder como encarnação de um povo homogêneo e bom que se insurge contra a opressão de uma elite corrupta.
O artigo demonstra como termos como “democracia”, “liberdade” e “corrupção” funcionaram como significantes flutuantes no discurso de Bolsonaro, assumindo sentidos diferentes para diversos grupos sociais. Como essa estratégia discursiva contribuiu para a formação de uma pretensão hegemônica? À luz da teoria de Laclau sobre a razão populista, quais são as possibilidades e limites desse tipo de articulação política no contexto brasileiro atual?
Na razão populista, os significantes flutuantes têm um papel central no que Laclau chama de heterogeneidade do social, a tendência à pluralização de sentidos que foi intensificada a partir de processos como a ascensão do neoliberalismo e a globalização no final do século XX. A condição flutuante da significação está presente em todo processo significativo, mas no caso da política, se faz necessária a presença de elementos que estabilizam a flutuação para estabelecer relações de representação. No caso da razão populista, esse elemento é o ponto nodal. Para estabelecer uma hegemonia, é preciso a construção de pontos nodais que estabilizam a significação, porque do modo contrário, não seria possível estabelecer uma relação de representação entre o líder e o povo. No contexto brasileiro atual, certos significantes têm mais proeminência, como democracia e corrupção, e atores políticos com pretensões hegemônicas precisam oferecer articulações desses elementos para estabilizar suas identidades. Enquanto o bolsonarismo tenta se renovar, nesse momento de crise à luz do julgamento no STF, buscando a disponibilidade de significantes como direitos humanos e anistia, o governo Lula também se insere na tentativa de estabilizar a flutuação de significantes para manter o diálogo com setores que formaram a frente ampla que venceu as eleições em 2022 sem perder apoio de suas bases históricas. Como qualquer processo político, este é marcado por incerteza e abertura, e as identidades se formam no decorrer desse processo de articulação.

A pesquisa sugere uma “moderação” no discurso de Bolsonaro, com seu Índice Rile caindo significativamente entre o período como deputado e suas candidaturas presidenciais. Isso representa uma adaptação estratégica ou uma mudança mais profunda?
A queda do Índice Rile nos programas de governo apresentados por Bolsonaro nas eleições de 2018 e 2022, em comparação aos seus mandatos como deputado, é interpretada por nós não como uma mudança ideológica substantiva, mas como uma adaptação estratégica. Enquanto parlamentar, Bolsonaro apresentou um Índice Rile médio superior a 75, o que indica uma posição extremamente à direita no espectro ideológico. Já seus programas de campanha, especialmente o de 2018, apresentam um Índice Rile de 42,6, sinalizando uma relativa moderação. No entanto, essa moderação é localizada no plano do conteúdo programático escrito e não se reflete de maneira integral em seus discursos públicos e práticas políticas. A nosso ver, trata-se de uma tentativa de ampliar o apelo eleitoral e dialogar com segmentos mais amplos do eleitorado, especialmente após a consolidação de sua candidatura presidencial. Ainda assim, a radicalidade permanece presente, e talvez até mais acentuada, em suas falas públicas, entrevistas e ações enquanto presidente. Na pesquisa que realizamos sobre as postagens realizadas por Bolsonaro em suas redes sociais ao longo de seu mandato presidencial isto fica ainda mais nítido. A análise do Rile, portanto, precisa ser lida em conjunto com os dados qualitativos e com os contextos de enunciação. Se analisássemos apenas os programas de governo, poderíamos incorrer na falsa suposição de que houve um reposicionamento ideológico. Porém, como toda análise de discurso insere o corpus empírico em um contexto mais amplo, podemos afirmar que o núcleo duro do discurso bolsonarista, estruturado no antipetismo, no moralismo conservador e no punitivismo, não apenas se manteve como foi amplificado ao longo do período. O índice menor, nesse sentido, expressa mais os limites do instrumento de análise documental e os programas de governo do que uma efetiva moderação do conteúdo ideológico.