Como a polarização política afeta o apoio à democracia? Uma pesquisa desenvolvida pelos pesquisadores Julian Borba (Universidade Federal de Santa Catarina, Ednaldo Ribeiro (Universidade Estadual de Maringá) e Mario Fuks (Universidade Federal de Minas Gerais) encontrou algumas respostas para essa questão.
Publicado recentemente, “Polarization and ideology: exploring the contextual nature of democratic commitment” examinou dados de opinião pública de 57 países, considerando a polarização, a ideologia dos eleitores e a ideologia dos governos. O estudo concluiu que a polarização política está associada a um menor compromisso democrático, mas seus efeitos variam conforme a ideologia dos eleitores. Isso significa, por exemplo, que indivíduos de direita, especialmente os mais extremistas, demonstram menor adesão à democracia em contextos polarizados. Por outro lado, o compromisso democrático dos eleitores de esquerda aumenta quando o governo é de direita e a polarização se intensifica.

Em entrevista ao Blog Conjuntura Política, Ednaldo Ribeiro, que também é pesquisador do Redem, analisa alguns dos principais resultados do estudo e explica como a polarização pode gerar efeitos negativos para a democracia. Segundo Ribeiro, a polarização é um componente inerente à democracia. O problema é quando ela se intensifica a ponto de os adversários serem tratados como inimigos. “Nesses contextos fortemente polarizados os indivíduos estão mais propensos a abrir mão de alguns princípios básicos da democracia”, explica.
Na pesquisa, vocês chegam a algumas conclusões bastante interessantes. Gostaria, inicialmente, que você explicasse por que polarização é ruim para a democracia? Ela é necessariamente ruim?
Algum nível de polarização é inerente à democracia, já que essa forma de governo permite a ocorrência de competição e oposição política. A formação de posições políticas divergentes sobre temas relevantes, portanto, não devem ser evitadas ou temidas. O problema é que quando a polarização se torna muito intensa pode levar a classificação dos adversários como inimigos que devem ser combatidos de forma radical. Nesses contextos fortemente polarizados os indivíduos estão mais propensos a abrir mão de alguns princípios básicos da democracia liberal para evitar que seus adversários conquistem parte do poder político, abrindo espaço assim para alternativas não democráticas no mercado eleitoral.

Um dos achados da pesquisa de vocês é chamar atenção para os efeitos dos contextos políticos e a ideologia dos cidadãos em um contexto de polarização política. Em que medida essas duas variáveis afetam o apoio à democracia?
A novidade do artigo foi propor que os efeitos negativos da polarização, mencionados na resposta anterior, não são homogêneos para todos os indivíduos e contextos, podendo então variar entre os diferentes grupos ideológicos e também em contextos governados por partidos de direita, centro e esquerda. Ou seja, propomos que os efeitos deletérios da polarização sobre a adesão à democracia são moderados pela ideologia individual e dos governos, principalmente em razão da distância ideológica entre eleitores e partidos no poder.
Na sua avaliação, quais seriam as razões para o campo da direita ter uma média de apoio à democracia menor que a esquerda e o centro?
Desde os estudos pioneiros sobre a personalidade autoritária conduzidos na década de 1950 o posicionamento ideológico à direita aparece associado a traços de personalidade como a rigidez de pensamento, deferência à autoridade e menor apoio normativo à princípios da democracia liberal. Neste sentido nossos dados apenas confirmam algo já sabido e indicam a manutenção dessa disposição atitudinal menos comprometida com a democracia como uma parte dessa mentalidade mais comum entre grupos autoidentificados com a direita.

Como podemos diferenciar diferenças políticas, algo que parece intrínseco à democracia, especialmente por estimular o debate entre grupos diferentes, e o sentido de polarização política?
Um ponto importante de diferenciação diz respeito aos entendimentos sobre quem são os “outros” em oposição ao “nós”. Se os militantes ou simpatizantes dos partidos adversários são vistos como adversários em uma disputa regulada por regras justas, temos níveis aceitáveis de polarização que contribuem para o debate público sobre temas relevantes. Se esses adversários são vistos como inimigos perigosos que podem se valer dessa disputa para prejudicar de forma definitiva meus interesses, o sinal de alerta deveria soar, já que nessa luta os indivíduos podem estar dispostos a sacrificar a própria existência da disputa para evitar uma derrota. Estamos em perigo quando as pessoas escolhem a derrota do adversário em detrimento das regras democráticas.
Há uma discussão na literatura de que o sentido de polarização política muito popularizada hoje em dia é imprecisa. Estaríamos, na verdade, diante de um contexto de polarização afetiva e não necessariamente política. Como você vê essa discussão?
A literatura mais recente tem resolvido essa imprecisão, distinguindo o motor político ou afetivo da polarização. Principalmente em contextos como o brasileiro, com fidelidades partidárias frágeis e baixa sofisticação política, a separação entre afetos e posições políticas sobre assuntos tem importância ainda maior. Os trabalhos conduzidos por aqui têm apresentado evidências mais robustas de polarização movida por sentimentos.

Como podemos interpretar os achados da pesquisa considerando o contexto brasileiro? Por hipótese, podemos dizer que os quatro anos do governo Bolsonaro produziu menos apoio à democracia brasileira? E agora, com a mudança para um governo de centro-esquerda, como ficamos?
O que identificamos é que o apoio à democracia é uma função da ideologia individual e da sua distância em relação ao partido no governo. Mais especificamente, encontramos que eleitores de extrema-direita perdem mais apoio quando estão em governos de esquerda do que os eleitores extremados de esquerda quando vivem sob o governo da direita. Em termos comparativos, portanto, a chance de perdermos mais apoio à democracia ocorre agora, já que temos um governo de centro-esquerda e os eleitores de direita são mais reativos.
Embora a extrema-direita tenha sido derrotada em 2022, há sinais consistentes de um apoio massivo na sociedade a essa ideologia. Por essa perspectiva, você considera que a democracia brasileira ainda corre risco?
A democracia precisa ser renovada diariamente, então não acredito ser possível afirmar que não existam perigoso no futuro próximo. Felizmente o tamanho relativo dos grupos extremados, principalmente de direita, é reduzido. A chance desse grupo reagir de maneira mais direta para minar as bases democráticas nesse contexto de governo de centro-esquerda é baixa, mas é preciso sempre estar atento ao crescimento do apoio a propostas autoritária para além desses extremistas.
Uma eventual condenação de Jair Bolsonaro e seu grupo por tentativa de golpe poderia gerar um efeito pedagógico, no sentido de que as instituições estariam indicando os limites da disputa política. Mas, em um contexto polarizado, você acredita que pode haver também um efeito reverso, de uma perda maior de apoio à democracia nos grupos de direita ou extrema-direita?
Sem dúvida essa eventual condenação será mais um componente na caracterização do adversário como inimigo. Grupos extremados à direita fatalmente verão nisso mais um sinal do uso das regras para beneficiar o seu a adversário, fortalecendo assim sua avaliação negativo sobre o funcionamento da democracia em nosso país. Mas a sinalização para todos os grupos de que os limites da disputa continuam existindo me parece mais importante, pois tem potencial para atingir moderados e eleitores de centro, que somam a maioria. Ao final, penso que o saldo dos efeitos tende a ser mais positivo do que negativo.