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A crise do PIX, as redes de indignação e os limites da comunicação governamental
A crise do PIX, desencadeada após uma decisão da Receita Federal, indica muito mais do que a baixa capacidade de coordenação do Governo Federal para comunicar suas decisões. No contexto da comunicação digital, a natureza do debate público mudou, e isso exige uma compreensão diferente da comunicação pública, suas limitações institucionais e responsabilidades.
Primeiro, vamos ao mais elementar. É evidente que faltou ao Governo uma visão integrada da comunicação, com ações coordenadas que levassem em conta o cenário, os riscos possíveis da medida da Receita e as melhores estratégias. Além disso, existe uma oposição que sabe usar a gramática digital e está atenta às percepções do cidadão médio. Bem, vamos supor que o Governo tivesse um maior alinhamento entre suas decisões e as estratégias de comunicação. Isso contribuiria para reduzir ruídos e limitar o desencadeamento de uma crise política? Sim. Mas seria suficiente? Aparentemente, não.
Falta nessa equação uma compreensão mais realista da natureza do debate público no ambiente digital. Desde 2017, um grupo de pesquisadores do departamento de psicologia das universidades de Yale e de Nova York tem apresentado estudos demonstrando como os temas políticos transitam e são assimilados pelos usuários das redes digitais. Para isso, William Brady, M.J. Crockett e Jay J. Van Bravel elaboraram um modelo explicativo que articula os campos da comunicação, tecnologia e psicologia cognitiva.
Motivação, Atenção e Design: o modelo das redes
Publicado em 2020, o principal artigo dos pesquisadores (“The MAD model of moral contagion: The role of Motivation, Attention, and Design in the spread of moralized content online”) apresenta pistas interessantes. Classificado como MAD (Motivação, Atenção e Design), o modelo considera que o debate político nas redes digitais é fortemente influenciado por três fatores que potencializam tendências psicológicas naturais: 1) a Motivação, resultante da busca incessante por reconhecimento social por meio de termos moral-emotivos; 2) a Atenção, que é mantida por meio de recompensas emocionais e comportamentos compulsivos; 3) e o Design, que potencializa interações instantâneas e reações rápidas a partir do desenho tecnológico das redes.
O ponto central de funcionamento do modelo, qual seja, o uso de termos moral-emotivos, tais como “Esse político é um ladrão!!”; “O Governo persegue os mais fracos. Isso é injusto”; “Precisamos salvar a nossa pátria amada”; “Governo incompetente“; têm grande potencial de mobilizar, porque engatilham identificação e reações das audiências.
“(…) uma contribuição fundamental do modelo MAD é ressaltar como nossas tendências psicológicas naturais são amplificadas pelos recursos de design específicos presentes no ambiente de mídia social. Especificamente, o modelo MAD destaca como a mídia social pode amplificar a identificação de grupo e as emoções baseadas em grupo, aumentar nossa atenção ao conteúdo moral e emocional e aumentar a capacidade das emoções de se espalharem mais e mais rapidamente do que em outros contextos”
Para se ter uma ideia, nos testes que realizaram, os pesquisadores identificaram uma chance 20% maior de viralização dos conteúdos moral-emotivos quando comparados com outros conteúdos. Na outra ponta, os produtores de conteúdos moral-emotivos são recompensados com likes, comentários e compartilhamentos. Pelo modelo MAD, o debate público muda de natureza quando a repetição desse comportamento leva produtores e disseminadores a promoverem esse tipo de debate não mais por recompensa, mas simplesmente porque querem.
Redes de indignação
Esse modelo sugere que as mídias digitais, onde o debate público acontece diariamente, são espaços nos quais o sentimento de indignação, traduzido e estimulado via discursos moral-emotivos, apresenta muito mais chances de ganhar tração, mobilizando falas e percepções. Nesse ponto, a indignação constitui uma chave-retórica muito mais crível e próxima do campo da oposição, a quem cabe criticar e promover leituras das ações do Governo. Há, portanto, uma limitação objetiva que coloca o Governo em uma situação de desvantagem competitiva no ambiente digital.
Outros exemplos recentes ajudam ilustrar esse ponto. Durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, medidas de restrição e lockdowns implementadas por governos ao redor do mundo foram alvo de críticas virulentas, muitas vezes baseadas em desinformação. Esse comportamento engajou boa parte dos cidadãos, levando os governos a reagirem. No Brasil, a campanha de vacinação enfrentou resistência de grupos que usaram termos como “ditadura sanitária” e “experimentação em massa” para mobilizar seguidores contra as políticas públicas. Novamente, o Governo se viu na defensiva, tendo que promover campanhas de esclarecimentos.
Nos Estados Unidos, o presidente é talvez o exemplo mais emblemático de como a retórica da indignação pode ser eficaz. Suas postagens no Twitter, ainda durante seu primeiro governo, muitas vezes carregavam termos como “fake news”, “fraude eleitoral” e “perseguição política”. O uso desses termos moral-emotivos gerava engajamento massivo e consolidava sua base de apoio.
Até onde a comunicação governamental pode ir?
O modelo MAD e o seu potencial para promover redes de indignação cria limites para a comunicação institucional. A primeira é que cabe menos ao Governo o discurso da indignação, a não ser que se adote uma comunicação de confronto permanente e bastante personalista, como o ex-presidente dos Estados Unidos. A segunda limitação é que a comunicação institucional está regida por regras de comportamento às quais a oposição ou os eleitores mais críticos não estão submetidos. Para piorar, as plataformas digitais são ambientes opacos. Na prática, não temos informações sobre como os fluxos informacionais são promovidos ou limitados, potencializando certos pontos de vista ou, quem sabe, a própria indignação como gatilho para ampliar a atenção e o tempo de tela dos usuários.
No caso brasileiro, a comunicação governamental enfrenta desafios adicionais. Além das limitações institucionais, há uma desconfiança em relação ao Estado, o que dificulta ainda mais a tarefa de promover mensagens sobre suas decisões. É possível inovar em formatos mais alinhados com o ambiente digital? Se antecipar aos debates, ter uma agenda mais alinhada às demandas do cidadão nas redes? Sim. É possível. Mas há limites.
Em resumo, a crise do PIX expôs não apenas as fragilidades da comunicação governamental no ambiente digital, mas também um exemplo de como, mesmo com uma excelente estratégia de comunicação, o Governo estará sempre muito mais sujeito a perder essa batalha. Enquanto a oposição bem-organizada e hábil no uso da linguagem das redes pode explorar sentimentos de revolta e descontentamento para engajar o público, o Governo enfrenta limites que o impedem de competir em igualdade de condições. É uma luta, em tese, com muita desvantagem, mas, claro, não precisa ser um 7 x 1.
Fábio Vasconcellos
Doutor em Ciência Política pelo IESP (2013) e mestre em Comunicação Social pela UERJ (2008). Professor associado da Faculdade de Comunicação UERJ. Temas de interesse: Comportamento Eleitoral; Comunicação Política; Eleições; Opinião Pública; Analise de Dados.