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“O humor dos memes revolucionou a cena cultural e política do país nos últimos anos”, afirma o pesquisador Viktor Chagas. 

Diariamente, um volume expressivo de memes circula pelas redes e entre aplicativos de mensagens. Uma celebridade, um anônimo que ganha notoriedade repentina ou mesmo, e principalmente, os políticos são alvo da criatividade dos usuários das redes. Humor, ironia e críticas, muitas vezes ácidas, transitam na dinâmica das redes na forma de imagens, colagens e reedições, atraindo a atenção, estimulando discussões e, claro, risos. De tão presente na vida contemporânea, os memes são objeto de atenção de pesquisadores interessados em examinar suas formas, características e efeitos no campo político.  

Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), o pesquisador Viktor Chagas coordena o grupo de pesquisa de projeto de extensão #MUSEUdeMEMES. Entre os seus diferentes formatos, o museu já acompanha e analisa o tema dos memes desde 2011. Para Chagas, os memes provocam uma “espécie de choque de civilizações” ao permitir que o cidadão comum possa discutir temas políticos em “pé de igualdade com as elites”. Embora chame a atenção para a superficialidade com os assuntos políticos são tratados, Chagas considera que “o humor dos memes revolucionou a cena cultural e política do país nos últimos anos”. Segundo o professor, há diferenças no modo como o campo da esquerda e da direita utilizam essa linguagem. “(..) enquanto a esquerda tende a demonstrar mais escrúpulos, o humor de direita não perde a piada”, observa. Na visão de Viktor Chagas, os memes são inclusivos e o presidente Lula, que enfrenta uma crise de comunicação, pode também utilizar esse recurso para chegar a mais públicos. 

De que maneira os memes se inserem na comunicação política contemporânea, em especial no cenário brasileiro? 

A cultura dos memes tem forte entrelaçamento com a comunicação política. No Brasil, especialmente, os memes proporcionaram uma espécie de porta de entrada para a discussão de temas sensíveis que muitas vezes operavam como uma barreira inacessível a algumas camadas da população. Tome o exemplo do debate político. Normalmente tido como um ambiente sério e inconspurcável, o cenário político brasileiro, nos últimos anos, se viu inundado de memes, piadinhas de todo tipo, frases de efeito. Este movimento, é claro, não é uma exclusividade nossa. Em muitos países, como nos Estados Unidos ou na França, os memes definitivamente entraram em cena na política. Mas, por aqui, esse movimento representa, mais do que tudo, a incorporação de parcelas da população que antes estavam ou se sentiam alijadas do debate nacional.  

Nessa perspectiva, os memes tornam a política pop? 

É uma espécie de choque de civilizações, como se a barbárie popular finalmente pudesse acessar e discutir em pé de igualdade com as elites. E, isso, é claro, produz um forte estranhamento na experiência de reconhecimento desses polos. Em grande medida, os memes são catalisadores desse processo, porque materializam uma linguagem simples, permeada por referências da cultura pop e do humor, e capaz de ser compreendida e incorporada à linguagem de muitas maneiras diferentes. O humor dos memes revolucionou a cena cultural e política do país nos últimos anos. Mas nunca é demais lembrar que a comunicação política sempre foi, de certo modo, atravessada por memes, à medida que as campanhas e o cotidiano da política eram muitas vezes ancorados em bordões, frases de efeito, apelidos pejorativos contra adversários, gafes, soundbites. 

Nas suas pesquisas, você encontrou algum padrão no uso de memes pelo campo da esquerda versus direita? 

Embora haja algumas investigações que se propõem a comparar os usos e apropriações de memes pelo campo progressista em relação ao campo conservador, há pouco consenso na literatura sobre em que medida esses usos de fato diferem entre si e inclusive sobre como podem ser comparados. No mais das vezes, a comparação é evocada por uma impressão de que a direita faria melhor uso desse recurso do que a esquerda, mas esta comparação se resume a colher métricas de engajamento de alguns conteúdos. Dessa forma, se negligencia uma diferença importante entre o que a literatura descreve como “meme” e o que se reconhece como “viral”.  

Você poderia explicar melhor essa nuance? 

Memes não são necessariamente conteúdos que viralizam, ao contrário, podem muito bem funcionar como conteúdos de curto alcance, próprios de um capital social de bonding, isto é, propensos a construir e consolidar identidades coletivas, muito mais do que difundir mensagens. Além disso, o que caracteriza um meme não é a sua reprodução, mas o seu espalhamento, ou seja, sua capacidade de produzir variações sobre si mesmo, incluindo paródias, remixes, releituras, o que, sem dúvida, ajuda na produção de um imaginário profundo, com referências culturais partilhadas. Posto isso, ainda assim, é importante reconhecer diferenças no modo como o humor dos memes se manifesta entre os campos da esquerda e da direita. Essas diferenças não necessariamente dizem respeito de um uso estratégico, elas podem simplesmente resultar de nuances culturais, mas elas repercutem nos memes. É comum, por exemplo, que o humor de esquerda seja marcado por circunscrições importantes no que tange aos direitos humanos, sobretudo quando direcionado a grupos minorizados. O resultado é que, enquanto a esquerda tende a demonstrar mais escrúpulos, o humor de direita não perde a piada. Isso não significa que não haja misoginia, racismo ou homofobia, para citar alguns exemplos, entre as piadas do campo progressista, mas há um debate mais acalorado a respeito dos limites do humor, em relação à liberdade de expressão. 

Há diferenças no modo como candidatos de cargos proporcionais versus candidatos majoritários utilizam memes? 

Candidatos a cargos proporcionais tendem a ter menos a perder e, nesse sentido, o humor escrachado pode lhes ser um diferencial mais expressivo. No caso de candidatos a cargos majoritários, exceto se se tratar de um azarão, a cautela costuma ser mais acionada. Há, muitas vezes, o receio de que o humor possa deslegitimar uma candidatura ou de que o escracho ou o deboche possam se voltar contra o próprio candidato, como um efeito bumerangue. Por essa razão, candidatos de oposição tendem a empregar o humor com mais frequência que candidatos de situação. Mas candidatos de oposição em uma disputa muito acirrada também costumam pensar duas vezes antes de partir para o embate franco e bem-humorado. Em suma, são muitas as variáveis a se pesar. Mas o humor é, sem dúvida, um artifício importante para as candidaturas e o campo político em geral. 

Do ponto de vista positivo, os memes são um tipo de linguagem que faz a mensagem política circular mais. Mas parece haver também prejuízos, não? Como você analisa, por exemplo, a relação entre memes e a qualidade da representação política? 

Sem dúvida. Quem acha que os memes são apenas um conteúdo anódino e leve está perdendo muitas camadas de seu significado estratégico. Em primeiro lugar, porque eles podem e são frequentemente incorporados como parte de um repertório de forte prejuízo à integridade da comunicação política, por vezes, imbuídos não apenas de ataques ferinos e caluniosos a adversários, mas ainda contaminados por discursos perigosos, ódio, desinformação, mensagens de teor conspiracional. Em segundo lugar, porque o efeito dos memes é um efeito de longo prazo, e justamente por isso extremamente difícil de ser medido. Tome-se o exemplo dos memes de bom dia. Um conteúdo que aparentemente nada mais há de frugal. Entretanto, as mensagens incutidas nesse gênero com muita frequência valorizam aspectos tradicionais, meritocráticos, e uma visão da fé cristã particularmente conservadora. Há pouca margem nesses conteúdos para o pluralismo de opiniões e a diversidade de identidades. E eles vêm há anos moldando e reforçando um imaginário profundo que é muito caracteristicamente acionado em grupos reacionários. Terceiro e último lugar, se os memes podem constituir uma via de acesso a camadas da população historicamente marginalizadas do debate público, se eles abrem uma janela de oportunidades para a participação política por meio do humor, da sátira social, e se socializam politicamente os indivíduos, eles também, é claro, alienam. Não apenas porque difundem enquadramentos específicos, mas sobretudo porque superficializam o debate.  

Tomando esse ponto.  Não corremos o risco de a política que, muitas vezes, precisa discutir temas áridos e difíceis se perder no uso do humor ou da ironia? 

Eu quero crer que o humor tem um papel importante a cumprir na política. Há um movimento já cristalizado, entre importantes vozes públicas, segundo o qual a política não deveria se misturar com o humor, tanto quanto o humor, e o entretenimento de modo geral, não poderiam ser politizados. Há quem diga que deveríamos separar o entretenimento televisivo da política, que BBB não deveria refletir pautas políticas, que é muito chato de assistir. Há quem diga que atleta ou artista não deveriam se manifestar politicamente. Há quem diga que, hoje em dia, o humor perdeu muito com uma forte politização da piada. Na mesma direção, há quem sustente que a política não deveria empegar discursos humorísticos. Que política é coisa séria, mexe com a vida de muita gente, e não pode ser banalizada. Eu chamo este movimento de uma leifertização [Tiago Leifert, ex-apresentador do Globo] da política. 

Poderia explicar melhor essa ideia? 

A leifertização da política é esse movimento de recusar a associação da política com o humor e o entretenimento. A política pode e deve ser tratada com humor. A comunicação política sempre foi atravessada pelo humor e isso não é um demérito. Claro, isso envolve vantagens e vícios. Pois enquanto temos um humor politizado e crítico, que tende a levantar questões e questionar a autoridade pública, há também um humor que espezinha, que cria estereótipos negativos, que mistifica. O problema, contudo, a meu ver, não é o humor, mas os modos como esse repertório é empregado e, ainda, o discernimento crítico daqueles a quem ele é direcionado. Não compactuo da ideia de que a política é uma arena séria e árida que, portanto, não comportaria o humor. Entendo que, justamente porque alguns temas são difíceis, é que o humor pode oferecer apoio para que a sociedade não se sinta desamparada, basta ver como o humor é importante em contextos autoritários e repressivos, como durante a ditadura militar.  

Recentemente, o Governo Federal passou por uma grande crise política e de comunicação no caso do PIX. Muitos analistas acusaram o Governo de ser analógico. Há espaço para um presidente de quase 80 anos utilizar de forma eficiente a comunicação das redes? Ou mesmo usar memes como uma linguagem institucional do Governo? 

Sim. Os memes são, a despeito do que possa parecer à primeira vista, uma linguagem geracionalmente inclusiva. Memes de bom dia e fotinhos de gatos fofos com legendas engraçadinhas, por exemplo, comprovadamente são gêneros com ampla repercussão junto a um grupo etário mais maduro. Mas acho que este não é o ponto aqui. O ponto é que estratégias de reposicionamento da imagem são comuns a qualquer época na política. Partidos mudam de nomes e reconstroem suas identidades. Políticos reaparecem na cena pública com uma roupagem completamente nova. Nós temos muitos exemplos de como os memes podem ajudar a repaginar a imagem pública de um ator político. De Plínio de Arruda Sampaio, que, candidato em 2010, abraçou os memes e assumiu uma postura mais descontraída, alcançando relativo sucesso junto às bases da juventude do PSOL, a Geraldo Alckmin, que atualmente tem lançado mão de um expediente fortemente atravessado pelos memes na sua comunicação por meio das plataformas digitais e tem sido muito elogiado, inclusive por segmentos que o criticavam antes por uma postura mais tecnocrática ou insossa. Portanto, respondendo mais diretamente, há espaço, sim, para que um presidente de quase 80 anos surfe nessa mesma onda. 

Como exatamente? 

 É importante compreendermos que, de certa forma, Lula sempre foi muito bom em criar e se associar a memes. Voluntária ou involuntariamente, Lula é um político extremamente hábil em empregar memes na sua comunicação analógica. O que falta é, talvez, transpor essa eficiência para o digital. Esse processo, naturalmente, não pode ser realizado de forma impensada e não assessorada. São largamente documentadas as campanhas publicitárias mal-sucedidas que tentam “forçar a barra” para encaixar um meme, resultando em mensagens artificiais, de forte rejeição, que ferem a natureza da comunicação memética, aquela que preza pela espontaneidade e despreza uma “fórmula de sucesso”. No marketing político, na comunicação pública e governamental, o uso do humor igualmente não pode ser gratuito. Nem por isso ele deve ser desprezado. No caso específico do PIX, o Banco Central foi bastante habilidoso no emprego de memes durante o desenrolar da controvérsia. Algumas de suas publicações nas mídias sociais alcançaram forte engajamento, em comparação com a média de reações a publicações do mesmo perfil em contextos outros. 

A recente eleição na Alemanha teve um componente interessante. Segundo analistas, a extrema-direita conseguiu ampliar sua base utilizando principalmente o tiktok. O campo da esquerda, por sua vez, também ampliou sua votação recorrendo à linguagem das redes. Os meios de comunicação tradicionais perderam espaço? 

Eu não acho que os meios de comunicação perderam espaço. Mas entendo que seu papel provavelmente vem se reconfigurando nos últimos anos. Anteriormente, pensávamos os meios de massa como os principais difusores dos discursos políticos. O que a larga adoção das plataformas digitais tem nos apontado é para um cenário em que elas repercutem, mas, muitas vezes, carecem de insumos materiais. E estes insumos são providos muitas vezes pelos meios tradicionais. Candidaturas como as de Pablo Marçal provam, ao contrário do que sugerem alguns analistas, uma forte dependência dos meios tradicionais para gerar matéria-prima para os seus “cortes”. Em um caminho semelhante, muito embora Bolsonaro, em 2018, tenha sido descrito por muitos analistas como um fenômeno construído pelo digital, historicamente se trata de um político que se beneficiou profundamente de uma certa complacência da mídia televisiva, especialmente dos programas de auditório, que o tratavam como figura folclórica, e durante anos abriam espaço para que ele pudesse ganhar visibilidade. Não quero, com isso, dizer que muito desse movimento do digital não seja também autorreferencial. Sem dúvida, a sociabilidade nas plataformas digitais reflete, com frequência, um mundo à parte, com recursos e expedientes próprios.  

Você poderia explicar melhor? 

No X/Twitter ou no TikTok, por exemplo, há repertórios que não encontram paralelo na vida material. E, claro, como tenho procurado sustentar em vários de meus estudos, aqueles que melhor incorporam a cultura de plataforma, aqueles que fazem melhor uso de suas affordances, que espelham os interesses e as demandas específicas dos públicos conectados, saem ganhando, porque são beneficiados pelos algoritmos. Sistemas baseados em recomendação, como é o caso do TikTok, tendem a valorizar conteúdos leves, bem-humorados, ou de forte apelo emocional. Trata-se, é claro, de um investimento em uma retórica populista, de comunicação pretensamente “desintermediada” e “espontânea”. Mas essa disputa inegavelmente requer muita habilidade dos atores. O ambiente político é essencialmente multiplataforma, como sugerem os fluxos, por exemplo, de torrentes de links do YouTube disseminados em grupos políticos do WhatsApp, e remediador, como vimos durante a pandemia, com a experiência inédita e curiosíssima dos “comícios online”.  

Fábio Vasconcellos

Doutor em Ciência Política pelo IESP (2013) e mestre em Comunicação Social pela UERJ (2008). Professor associado da Faculdade de Comunicação UERJ. Temas de interesse: Comportamento Eleitoral; Comunicação Política; Eleições; Opinião Pública; Analise de Dados.