Dois anos e meio após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro, o Brasil ainda se encontra em profundo cenário de tensionamento político, articulado pelo campo da extrema-direita. Na iminência de ser condenado e preso, Bolsonaro e seus aliados mobilizam os eleitores para conquistar o maior número de cadeiras no Senado em 2026 e, com isso, controlar o Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do impeachment de ministros.
No cardápio, consta também a aprovação da anistia ao ex-presidente acusado de tentativa de golpe. Do exterior, o filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), articula uma ofensiva com efeitos diretos sobre o Brasil.
A persistência e, por que não, a força do autoritarismo promovido por Bolsonaro, mesmo depois de perder para Lula em 2022, indica um desafio sem precedentes no pós-1988 e, talvez, com risco real de um retrocesso para a democracia do país nos próximos anos. Pelo menos é o que sugerem os achados de uma pesquisa publicada, em julho, no Journal of Democracy.
Desde 1994, quase 90% dos sistemas políticos no mundo que supostamente “retornaram” à democracia, após um período autoritário, falharam em manter o nível de democracia por, no mínimo, cinco anos. A queda na sobrevida das “reviravoltas democráticas” superou o período anterior a 1994, quando a maioria (81,8%) do esforço de recuperar os regimes era mais duradouro.
O mito da resiliência democrática
Nessa perspectiva, a crença de que as democracias, mesmo depois de serem abaladas por ameaças autoritárias, têm uma capacidade de se recuperar e emergir mais fortes pode ser, na verdade, um mito. É o que sustenta “The myth of democratic resilience”, ao argumentar que há um “otimismo exagerado” na ideia de que os regimes democráticos estão mais fortes, inclusive considerando o caso brasileiro e a força da extrema-direita na sociedade.
Segundo os autores do estudo, Matías Bianchi, Nic Cheeseman e Jennifer Cyr, o otimismo em relação aos chamados “U-turns” democráticos – períodos em que um país regride para o autoritarismo e depois retorna ao seu nível anterior de democracia – “obscurece uma verdade incômoda”: a maioria desses retornos não conseguiu reverter os danos causados e, de fato, “posteriormente experimentou outro período de declínio democrático nos cinco anos seguintes”.
Longe de ser uma vitória para a democracia, a natureza temporária da retomada pode simplesmente indicar “padrões contínuos de volatilidade política”. Para os autores, a designação de “U-turn” é, muitas vezes, excessivamente otimista, visto que mais da metade (52%) das 68 “U-turns” registradas entre 1900 e 2022 começaram e terminaram como não-democracias, sugerindo a fragilidade da evidência de resiliência democrática.
Fatores determinantes
O estudo identifica alguns fatores estruturais importantes e amplamente disseminados que tornam a recuperação democrática sustentável um desafio monumental. Um deles seria a existência de interesses conflitantes das coalizações pró-democráticas.
As alianças que se formam para resistir ao autoritarismo e promover a democracia são frequentemente amplas e incluem membros com motivações diversas, o que torna mais difícil a coordenação da coalização para um sentido claro de limitar ou impedir a volta do autoritarismo.
Como sabemos, a frente ampla que venceu em 2022 no Brasil é composta por partidos de direita e centro-direita, além de lideranças que flertam com o bolsonarismo. O apelo do bolsonarismo para uma parte significativa da opinião pública explica a baixa capacidade de adesão de alguns partidos ao governo Lula.
Mesmo após a derrota do ex-presidente, a persistência da polarização e a crença generalizada de muitos cidadãos nas alegações falsas de Bolsonaro sobre fraude eleitoral ou sobre a inexistência de uma tentativa de golpe demonstram que o legado autoritário não foi superado.
Um segundo fator apontado pelos autores refere-se ao “cenário internacional desfavorável à redemocratização”, isto porque o ambiente global para o fortalecimento da democracia tem se deteriorado acentuadamente nas últimas três décadas. Segundo o estudo, governos ocidentais reduziram o financiamento para assistência à democracia e a pressão diplomática sobre regimes autoritários, muitas vezes devido a desafios internos.
Ao mesmo tempo, afirmam, “estados autoritários como a China e a Rússia, bem como potências médias como a Índia, a Turquia e os Emirados Árabes Unidos”, oferecem “modelos políticos alternativos e novas fontes de ajuda externa”, enfraquecendo a influência dos países que apoiam a democracia e permitindo que esses regimes diluam os compromissos globais com os padrões democráticos e de direitos humanos.
No caso do Brasil, a recente ação do governo americano, que pressiona para que o Judiciário suspenda os processos contra Jair Bolsonaro, demonstra um ambiente desfavorável. Trump tem ajudado a disseminar o falso discurso da família Bolsonaro de que o país vive uma ditadura. Esse cenário pode tanto reforçar o apoio interno à coalização pró-democracia, num movimento de ampliação da resistência, como reforçar a mobilização de parte da sociedade para crenças do campo bolsonarista.
O peso da desinformação
O terceiro fator discutido no texto refere-se à “desinformação transfronteiriça e as campanhas de propaganda” disseminadas por potências autoritárias. Nesse sentido, o ambiente e os usos das mídias sociais exacerbam a polarização e a erosão da confiança no governo e na política em geral. Como resultado, apontam, o compromisso dos cidadãos com a democracia vem caindo drasticamente.
Na América Latina, o apoio à democracia reduziu 15% nos últimos treze anos, e na África, houve uma “queda de 7% na última década”. Aspirantes a autocratas, como Nayib Bukele de El Salvador, exploram essa insatisfação popular para ascender ao poder com altos níveis de aprovação, mesmo violando direitos humanos e promovendo “flagrantes violações” contra o legislativo e o judiciário. Quando tanto a opinião pública interna quanto a comunidade internacional se tornam mais tolerantes com as políticas autoritárias, “os incentivos para os líderes políticos democratizarem são significativamente reduzidos”, salientam.
“The myth of democratic resilience” apresenta considerações importantes sobre a resistência ao autoritarismo e que podem ajudar a decifrar os riscos no caso do Brasil, considerando o cenário interno e externo. O desafio posto mostra, nesse sentido, que a possível condenação e prisão de Jair Bolsonaro não significa necessariamente o fim da crença autoritária que a extrema-direita tem conseguido mobilizar nas redes e em grande parte da sociedade. Pode representar, na verdade, o início de um novo ciclo de autoritarismo, obrigando novos esforços do campo pró-democracia.
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Fábio Vasconcellos
Doutor em Ciência Política pelo IESP (2013) e mestre em Comunicação Social pela UERJ (2008). Professor associado da Faculdade de Comunicação UERJ. Temas de interesse: Comportamento Eleitoral; Comunicação Política; Eleições; Opinião Pública; Analise de Dados.