Na carta em que anunciou o aumento de tarifas ao Brasil, o presidente americano, Donald Trump, fez referências a medidas que estariam prejudicando a democracia brasileira, como ações da Justiça que, nas suas palavras, impactaram eleições livres e a liberdade de expressão. Trump também mencionou o processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro como evidência de perseguição política.
O argumento do presidente americano para aumentar as tarifas, portanto, sugere que os EUA priorizam relações comerciais com países democráticos. Em outras palavras, a democracia seria um critério determinante nas relações comerciais dos Estados Unidos.
Os dados disponíveis, no entanto, sugerem que a realidade é mais complexa do que o discurso político. Segundo o índice de democracia da Economist Intelligence Unit, o Brasil apresenta pontuação de 6,49, em uma escala que vai de 0 (não democrático) a 10 (democracias sólidas).
Outro dado que chama a atenção é o fato de os Estados Unidos manterem uma balança comercial superavitária com o Brasil, acumulando, este ano, cerca de 4,5 bilhões de dólares. Ou seja, apesar da crítica à democracia brasileira, os EUA continuam se beneficiando economicamente dessa relação bilateral.
Um outro caso que ajuda a ilustra essa paradoxo. A China tem um dos piores índice de democracia (2,11) mas o EUA não apenas mantém relações comerciais com os chineses, como registra o mais alto déficit comercial (111 bilhões de dólares este ano) da sua balança.
Diante dessa aparente contradição, realizamos uma análise estatística mais ampla para investigar se há, de fato, uma associação entre o nível de democracia dos países e o tipo de relação comercial que os EUA mantêm com seus parceiros.
Para isso, utilizamos os dados do índice de democracia elaborado pela Economist Intelligence Unit em 163 países com os quais os Estados Unidos mantêm relações comerciais, e examinamos o saldo da balança dos Estados Unidos até junho.
Democracias importam?
Os resultados indicam uma ambiguidade: países mais democráticos estão associados a déficits comerciais dos EUA, enquanto os menos democráticos tendem a gerar superávits para os americanos.
Nos países onde há um déficit muito alto na balança comercial americana, o índice democrático mediano é de 7,16. Importante lembrar que China está nesse grupo e puxa o índice pra baixo.
O índice democrático mediano cai até a categoria de “equilíbrio” na balança comercial (2,86), mas volta a subir à medida que o superávit americano cresce. O índice sai de 2,80 (superávit), sobe para 4,70 (superávit alto) e chega a 5,50 (superávit muito alto).
A primeira conclusão geral é que os EUA realizam relações comerciais com países mais e menos democráticos. Mas o que mais podemos concluir?
Como é possível verificar, os déficits ocorrem em países mais democráticos e os superávits com países menos democráticos. O teste da diferença de médias do índice foi estatisticamente significativo, revelando que essas dinâmicas na distribuição do índice de democracia e as características da balança comercial não são desprezíveis.
Ou seja, aparentemente, o fato de um país ser menos democrático não representa um obstáculo para os EUA manterem relações comerciais e, no caso, até mais vantajosas. Esse dado contradiz a postura de Trump, que decidiu sobretaxar o Brasil, apesar de o país ter um índice de democracia acima da média geral.
Características implícitas das democracias
Com esses dados, é preciso considerar a complexidade das relações comerciais segundo o fator regime político. Países mais democráticos tendem a apresentar maior estabilidade institucional, previsibilidade regulatória e segurança jurídica — características que favorecem o estabelecimento de relações comerciais duradouras e confiáveis.
Isso explicaria o alto déficit americano com democracias mais consolidadas. A estabilidade democrática desses países pode atrair mais importações, especialmente de bens de alto valor agregado, tecnologia e serviços especializados, o que ajuda a explicar os déficits observados com essas nações.
Nesse sentido, o déficit não necessariamente indica uma relação desfavorável, mas sim uma dependência estratégica de mercados democráticos que oferecem produtos e condições comerciais mais interessantes.
Essa característica endógena reforça a complexidade da relação entre democracia e comércio, mostrando que o saldo da balança comercial pode refletir não apenas preferências políticas, mas também dinâmicas econômicas estruturais.
Nessa perspectiva, é possível sustentar duas hipóteses simultâneas e aparentemente opostas. Por um lado, os EUA parecem valorizar a democracia como critério de relacionamento, mantendo trocas intensas com democracias mesmo que isso resulte em déficits.
Por outro, a obtenção de superávits com países menos democráticos sugere que os interesses econômicos prevalecem sobre os valores políticos, revelando uma postura pragmática. Nesse caso, um país ser menos democrático representa, na verdade, mais ganho comercial para os EUA.
Em suma, os dados expõem uma tensão entre discurso e prática: a democracia pode ser um valor importante, mas não é necessariamente um filtro determinante nas decisões comerciais. A fala de Trump sobre o Brasil, portanto, não apenas ignora essa complexidade, como também contradiz os dados da balança comercial entre o Brasil e os EUA.
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Fábio Vasconcellos
Doutor em Ciência Política pelo IESP (2013) e mestre em Comunicação Social pela UERJ (2008). Professor associado da Faculdade de Comunicação UERJ. Temas de interesse: Comportamento Eleitoral; Comunicação Política; Eleições; Opinião Pública; Analise de Dados.