A América Latina passou por uma das transformações políticas mais profundas e abrangentes de sua história a partir de 1978. O que antes era uma região predominantemente marcada por regimes autoritários, sob o domínio de ditaduras militares ou sistemas unipartidários, testemunhou um “surto notavelmente amplo, sem precedentes e sustentado de democratização”, que levou a maioria de seus países a adotar governos democráticos até 2002.
Essa “terceira onda”, conforme o mais recente artigo do cientista político Scott Mainwaring para o “Journal of Democracy”, representou uma mudança fundamental no panorama político regional, que prometia novas eras de participação cívica e respeito aos direitos da população. No entanto, a análise dessa trajetória revela que o caminho da democracia na América Latina não foi linear.
Em “The third wave’s lessons for democracy“, Mainwaring propõe uma divisão desse período em duas grandes fases distintas. A primeira, que vai de 1978 a 2005, foi o auge das transições democráticas, segundo o autor. Foi um período de muito otimismo, marcado por um número expressivo de países que deixaram para trás o passado autoritário, com relativamente poucos retrocessos. As exceções, contudo, ocorreram nas tomadas de poder executivo no Haiti e na Venezuela de Hugo Chávez, além do autogolpe de Alberto Fujimori, no Peru.
A partir de dados do V-DEM do Freedom House, Mainwaring defende que o aumento significativo nos níveis médios de democracia na região alcançou seu pico por volta de meados dos anos 2000. A partir de 2006, o cenário mudou consistentemente. Essa segunda fase, que se estende até o momento, é caracterizada por um ritmo muito mais lento de novas transições e, de forma preocupante, por um aumento de “erosões democráticas”.
Erosão, estagnação e resiliência democrática
A “erosão democrática” se refere a declínios na qualidade da democracia, que minam instituições e práticas, mas que geralmente não levam a um colapso do regime eleitoral. Nesse contexto, o cenário do período recente tem sido marcado pela “estagnação democrática”. Muitos países, em vez de avançar em direção a um aprofundamento da qualidade democrática ou de retroceder para o autoritarismo, “estagnam com profundos déficits democráticos”, permanecendo em um estado intermediário onde eleições ocorrem, mas falhas significativas persistem em áreas como o Estado de Direito, controle do Executivo, combate à corrupção e proteção de direitos. Apenas um pequeno grupo de países, como Chile, Uruguai e Costa Rica, conseguiu manter consistentemente padrões mais elevados de democracia de alta qualidade.
Por outro lado, a combinação de resiliência – a democracia eleitoral na maioria dos casos não colapsou totalmente – e fragilidade – falhou em se aprofundar e foi alvo de erosão – Mainwaring argumenta que a experiência latino-americana desafiou muitas expectativas sobre onde e como a democracia poderia sobreviver.
No caso específico do Brasil, o autor afirma que o país passou por um “grande aprofundamento democrático” desde sua transição em 1985, que se estendeu “até o início dos anos 2010” . Embora tenha enfrentado “desafios recentes” e visto a “ascensão de forças iliberais”, o Brasil demonstrou resiliência ao “derrotar tentativas golpistas recentes” . A “recuperação parcial da qualidade democrática” após esses episódios é considerada pelo autor como uma das “vitórias importantes” que ilustram a capacidade dos atores pró-democracia de obter avanços mesmo em um cenário adverso.
O que aprendemos sobre o processo da democracia na AL
Ao examinar a trajetória em grande medida bastante complexa da democracia na América Latina – do boom inicial à subsequente estagnação e erosão – o autor lista cinco lições para compreender a dinâmica da democracia na região. Essas lições não se limitam a descrever os eventos, mas buscam analisar os fatores subjacentes que permitiram a sobrevivência da democracia em contextos socioeconômicos e históricos desafiadores, ao mesmo tempo em que apontam as barreiras que impediram o seu florescimento e facilitaram a persistência de antigos problemas, bem como o surgimento de novas ameaças autoritárias.
- A democracia pode sobreviver em contextos desafiadores: Ao contrário das expectativas baseadas em fatores estruturais como alta desigualdade, subdesenvolvimento e histórico autoritário, muitas democracias latino-americanas demonstraram resiliência. No estudo, Mainwaring afirma que a região “desafiou as expectativas sobre a capacidade da democracia de perdurar mesmo em países com altos níveis de desigualdade, desenvolvimento precário, histórico de autoritarismo e períodos de crise econômica” . Países com menor PIB per capita como Bolívia, El Salvador, Guatemala, Honduras e Paraguai se destacam como “grandes superadores democráticos” . Contudo, o Haiti serve como um lembrete de que em condições estruturais extremas, a probabilidade de sucesso democrático é baixa.
- A estagnação democrática é comum e persistente: Uma característica marcante é que muitas democracias da AL não atingiram um alto nível de qualidade nem entram em colapso, mas “estagnaram com profundos déficits democráticos”. Apenas Chile, Uruguai e Costa Rica consistentemente alcançaram democracias de alta qualidade. A fraca capacidade estatal, marcada por clientelismo, corrupção e conluio com o crime organizado, é um fator determinante para essa estagnação. Ações de atores externos, como EUA e OEA, segundo Mainwaring, tornaram o autoritarismo aberto mais custoso, mas não foram suficientes para garantir o aprofundamento democrático.
- Atores autoritários frequentemente mantêm poder pós-transição: Em muitos países, figuras e grupos ligados a antigos regimes continuam a influenciar a política e a moldar a democracia com suas práticas. “Em muitos países, atores-chave do antigo regime retêm poder após as transições democráticas”. São os casos de partidos sucessores autoritários como o PRI no México e os Colorados no Paraguai, e forças de segurança não reformadas. O caso da Argentina, que rapidamente reduziu o poder de atores autoritários, é apresentado como um contraste positivo.
- Novos atores autoritários emergem em contextos de fraqueza institucional: Além dos remanescentes do passado, a fragilidade institucional facilita o surgimento de novos desafios democráticos. A ascensão de populistas iliberais (de esquerda e direita) em sistemas partidários voláteis, bem como a crescente influência do crime organizado transnacional, que intimida e corrompe, têm minado a democracia. Alguns exemplos listados incluem Nayib Bukele em El Salvador, Alberto Fujimori, Hugo Chávez e Rafael Correa .
- Apesar das dificuldades, avanços democráticos são possíveis: Embora os tempos atuais sejam difíceis, a luta pela democracia continua. “A luta para aprofundar a democracia diante de tentativas de limitar, erodir ou até mesmo derrubar é sempre uma batalha contínua”.O autor aponta para exemplos “encorajadores” : a Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG), que, apesar de desmantelada, mostrou eficácia no combate à impunidade e na redução da violência; a Colômbia desde 2002, que registrou importantes ganhos como a redução da violência política; e o Brasil, que teve um grande aprofundamento democrático até o início dos anos 2010 e demonstrou resiliência ao derrotar tentativas golpistas recentes.
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Fábio Vasconcellos
Doutor em Ciência Política pelo IESP (2013) e mestre em Comunicação Social pela UERJ (2008). Professor associado da Faculdade de Comunicação UERJ. Temas de interesse: Comportamento Eleitoral; Comunicação Política; Eleições; Opinião Pública; Analise de Dados.