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Eleitores mais fundamentalistas do ponto de vista moral criam demanda por novas lideranças políticas, aponta estudo.

 “É possível falar de clivagens em um país cujo sistema eleitoral permite a existência de trinta partidos políticos, com longo histórico de regimes não democráticos (República Velha, Era Vargas e Ditadura Militar) e com baixa identificação partidária na opinião pública?”

A partir dessa questão geral um novo estudo publicado pela Revista Dados problematiza como eleitores e partidos no Brasil se conectam por meio de crenças e valores. Para um país com histórico de baixa identificação partidária, as conclusões de certa forma surpreendem. 

Segundo Julian Borba (UFSC), Matheus Ferreira (UFMG), Gregório da Silva (UFSC e Lucas Amorim (UNB), existem clivagens estáveis no eleitorado brasileiro, especialmente segundo a dimensão liberal-fundamentalista, que considera as crenças sobre questões como o papel da religião, o posicionamento em torno de temas morais como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Embora identifique clivagens estáveis, o estudo “Existem clivagens políticas no Brasil?” aponta, contudo, para uma desconexão relevante: essas divisões morais ligam fracamente eleitores e partidos em termos de congruência política, expondo um “gap” significativo no sistema representativo do país.

De certo modo, é  possível dizer que há espaço para o surgimento de lideranças políticas ainda mais fundamentalistas, que busquem uma conexão mais direta com os valores e crenças dos eleitores em questões sobre o aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo ou o papel da religião. 

A ascensão do bolsonarismo e o discurso moral-religioso

A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência em 2018, com um discurso que mobilizou pautas ultraconservadoras nos costumes e atacou minorias e partidos “mainstream”, catalisou o debate sobre clivagens no Brasil.

A agenda moral bolsonarista levou pesquisadores a considerarem que o conservadorismo sempre esteve presente no eleitorado brasileiro, mas carecia de uma oferta eleitoral congruente até então. O estudo, nesse sentido, oferece pistas e aprofunda essa discussão ao evidenciar que a dimensão liberal-fundamentalista é uma constante no eleitorado desde a década de 1990.

Essa clivagem se associa consistentemente a características demográficas dos eleitores, como escolaridade, identidade evangélica e religiosidade, que se revelaram preditores do fundamentalismo. Chama atenção na imagem abaixo a ascensão do antipetismo também como um forte estimador do fundamentalismo a partir de 2019, momento pós-eleição de Bolsonaro.

                                                Preditores da dimensão liberal-fundamentalista
Como ler o gráfico: considere os pontos em negrito, considerados estatisticamente significativos. Quanto mais à direita, maior o efeito positivo sobre o fundamentalismo. Quanto mais à esquerda, menos efeito sobre o fundamentalismo.

Fundamentalistas e mais liberais?

Surpreendentemente, apesar da proeminência de movimentos conservadores, o estudo observa uma redução geral no nível de fundamentalismo no eleitorado brasileiro entre 1997 e 2018, sugerindo que o eleitorado tem se tornado menos conservador ao longo do tempo. Essa tendência corroboraria a teoria da modernização, que argumenta que avanços sociais podem gerar uma “reação cultural” conservadora.

No que se refere às atitudes políticas, os resultados do estudo indicam que ser petista está associado positivamente ao liberalismo, enquanto o antipetismo se conecta ao fundamentalismo em pontos específicos no tempo, como 2019 e 2023. Embora nem sempre estáveis, esses vínculos tornaram-se estatisticamente significativos em 2019, o que pode estar ligado à crescente polarização política no país.

Eleitores e elites políticas mais distantes

A principal limitação identificada pelo estudo reside na fraca conexão entre as divisões do eleitorado e as posições das elites partidárias. Ao analisar o “macro gap” – a distância agregada entre a média da ideologia dos representantes e de seus eleitores –, a pesquisa revela um crescimento dessa diferença na dimensão liberal-fundamentalista. Essa divergência é explicada, em grande parte, pela maior liberalização das elites partidárias em relação ao público.

Referente ao macro gap, o crescimento da diferença entre a média dos eleitores e dos partidos na dimensão liberal-fundamentalista. Já na dimensão econômica, parece haver certa estabilidade a partir de 2017/2018.

O Partido dos Trabalhadores (PT) é um exemplo emblemático, com suas elites demonstrando alto grau de liberalismo nos costumes, contrastando com seus eleitores, que são, em média, menos liberais. Isso sugere que o sucesso eleitoral do PT está mais ligado a fatores econômicos e sociais do que a uma profunda conexão ideológica nos costumes.

Para o Partido Social Liberal (PSL), de Jair Bolsonaro em 2018, foi identificado um gap significativo na dimensão liberal-fundamentalista. Os autores explicam que a elite desse partido é particularmente fundamentalista, posicionando-se de forma mais extrema para se diferenciar e ocupar um espaço ideológico até então inexplorado.

Demanda por partidos mais conservadores

Os resultados do estudo de Borba, Ferreira, Silva e Amorim têm implicações diretas para a compreensão do cenário político brasileiro. A baixa congruência observada, especialmente no eixo liberal-fundamentalista, aponta para um espaço aberto para ofertas partidárias de extrema direita.

O estudo argumenta que a ascensão de Bolsonaro e da nova direita brasileira é, em parte, um reflexo da capacidade desses atores em representar um conjunto de valores do eleitorado que não estava sendo devidamente capturado por outros partidos.

Paradoxalmente, a polarização entre elites (com o PSL se tornando mais fundamentalista e o PT mais liberal) contribuiu para o aumento desse gap, contrariando as expectativas de que em contextos polarizados a distância entre partidos e eleitores diminuiria.

Os autores sugerem que o baixo partidarismo na opinião pública brasileira e a fragmentação do sistema partidário contribuem para esse “gap” ideológico.

Em síntese, “Existem Clivagens Políticas no Brasil?” conclui que as divisões de valores morais são um componente duradouro e latente no eleitorado brasileiro, mas a fragilidade da conexão ideológica entre os cidadãos e as elites partidárias cria uma descompensação que molda o panorama eleitoral e abre portas para o surgimento de novas forças políticas capazes de mobilizar esses anseios e valores não representados.

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Fábio Vasconcellos

Doutor em Ciência Política pelo IESP (2013) e mestre em Comunicação Social pela UERJ (2008). Professor associado da Faculdade de Comunicação UERJ. Temas de interesse: Comportamento Eleitoral; Comunicação Política; Eleições; Opinião Pública; Analise de Dados.

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