Professor associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o cientista político e pesquisador Ricardo Fabrino Mendonça tem liderado com outros dois colegas uma discussão que coloca um novo olhar sobre os algoritmos das grandes empresas de tecnologia e seus efeitos sobre a vida social e política. Publicado pela Oxford no fim de 2023, o livro Algorithmic institutionalism – The changing rules of social and political life ganhou o Prêmio Victor Nunes Leal, da Associação Brasileira de Ciência Política, na categoria de melhor livro de ciência política no biênio 2022-2024. A obra, produzida em conjunto com os professores Virgílio Almeida (UFMG) e Fernando Filgueiras, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, propõe analisar os algoritmos como instituições que atravessam diversas dimensões da vida contemporânea, reorganizando nossas relações culturais, políticas e sociais. “[O livro] analisa justamente como sistemas algorítmicos são perpassados por, e estruturadores de relações de poder”, observa Mendonça.
Em entrevista ao Blog, o professor da UFMG explica a perspectiva teórica do modelo proposto no livro e avalia as consequências do institucionalismo algorítmico para as práticas políticas. “O tempo da decisão algorítmica não é o da mesma ordem do tempo de processos institucionais e esse desencaixe traz consequências para o funcionamento da política democrática formal”, observa. Segundo Mendonça, o Brasil tem que enfrentar o debate da regulação das empresas de tecnologia e, para isso, a discussão precisa ser levada para o Congresso Nacional. O professor da UFMG considera que a aproximação de Donald Trump das empresas de tecnologia só revela a importância e dependência das big techs da política institucional “Trump fortalece a rede de reciprocidades, porque também depende dessas empresas”, observa.
A pesquisa de vocês oferece uma perspectiva nova e interessante para o debate sobre o poder das big techs e seus efeitos na vida coletiva e privada. Para quem ainda não teve oportunidade de ler a obra, quais pontos considera essenciais no estudo de vocês?

O livro tem um argumento simples, mas com muitas implicações e potenciais desdobramentos. Muita gente costuma pensar em como os algoritmos têm afetado instituições e a gente se propõe a entendê-los também como instituições. Nós partimos de uma definição ampla do conceito de “instituição” que bebe de diferentes tradições do institucionalismo, para pensar como sistemas algorítmicos se estruturam como conjuntos de regras que balizam contextos interacionais, atravessando comportamentos individuais, com consequências coletivas. Essa visão ampla nos leva à estruturação de uma grade analítica que ajuda a olhar para a operação de algoritmos na contemporaneidade.
E como o enfoque dos algoritmos como instituições se apresenta?
O enfoque do institucionalismo algorítmico nos convida a pensar, em primeiro lugar, os complexos processos interacionais por meio dos quais algoritmos são construídos e desenhados. Em segundo lugar, pensá-los como instituições requer compreendê-los em sua historicidade, investigando não apenas como se inserem em contextos sócio-históricos, mas também como algoritmos impactam esses contextos, por exemplo, por meio da dependência de trajetória. A grade analítica que propomos nos interpela a olhar, em terceiro lugar, para as regras e normas sociais que são moldadas pelos contextos de algoritmização da sociedade. Isso tem, obviamente, implicações sobre relações de poder, e a quarta dimensão analisa justamente como sistemas algorítmicos são perpassados por, e estruturadores de relações de poder. Isso não significa, contudo, que pensemos um poder acachapante que inviabilize qualquer forma de agência de sujeitos concretos que utilizam esses sistemas. A quinta dimensão olha exatamente para o modo como as pessoas jogam com algoritmos. Por fim, a sexta dimensão da grade analítica do institucionalismo algorítmico nos convida a pensar como algoritmos são discursos atravessados por outros discursos em um terreno de disputas simbólicas.
Quais as consequências analíticas desses seis pontos que a pesquisa propõe?

Ao avançar esse enfoque, o livro apresenta três contribuições fundamentais. A primeira é permitir o estudo de sistemas algorítmicos, oferecendo portas de entrada para a compreensão de um fenômeno frequentemente entendido como opaco ou abstrato demais. A segunda é que já tivemos que pensar a democratização de instituições complexas, opacas e atravessadas por profundas assimetrias. É o que precisamos fazer nesse caso, e o enfoque teórico construído nos aponta caminhos. Por fim, uma terceira contribuição é que, se entendemos os algoritmos como instituições, podemos também repensar o próprio conceito de “instituição” e, assim, desdobrar a lente conceitual proposta permite avançar o campo teórico do institucionalismo à luz de fenômenos atuais.
Que efeitos ou consequências você observa na prática política (atividade parlamentar, representação política e/ou eleições) em contexto orientado pela lógica algorítmica?
Se pensamos algoritmos como instituições, precisamos entender como eles interagem com outras instituições e alimentam processos de desinstitucionalização de práticas existentes e de reinstitucionalização de novas práticas. Ao balizar contextos interacionais, induzindo ou facilitando certos comportamentos e restringindo outros, sistemas algorítmicos atravessam o modo de operação não só de atores, mas das próprias regras em vigência. Não é novidade alguma dizer como a representação política tem mudado, incluindo o tipo de antagonismo de lacração na arena pública que rende engajamento, compartilhamento e visibilidade, por exemplo. Isso afeta os cálculos de partidos, os nomes cotados para eleições, a forma de manifestação de apoios e todas as estratégias de campanha. E isso é apenas uma camada das mudanças.
Quais outras podemos observar?
Podemos pensar, por exemplo, como sistemas algorítmicos afetam a temporalidade da política e isso me interessa muito. Podemos pensar as implicações disso para a democracia, com o fortalecimento de discursos racionalizantes de uma epistocracia que pode deslegitimar a própria ideia de democracia. Enfim, acho que o enfoque do institucionalismo algorítmico nos convida a repensar a política, em suas várias dimensões, num contexto de profundas transformações que vão dos processos de subjetivação, à estruturação de mecanismos de vigilância, passando pela erosão de pilares fundamentais dos modos institucionalizados de fazer política eleitoral.

O Brasil deverá enfrentar o debate da regulação das plataformas digitais este ano. O STF está com essa pauta, mas há sinais de uma retomada da discussão na Câmara. Vamos imaginar que a Câmara não encontre espaço para esse debate, como você vê a regulação via Supremo?
Eu preferiria ver a regulação no parlamento, idealmente com participação social e debate adequado, como ocorreu com o caso do Marco Civil da Internet. O cenário não é nada favorável para isso, mas, assim como no caso do Marco Civil, acontecimentos em curso, ou não antecipados, podem abrir as janelas de oportunidade para um debate sério e necessário a este respeito. Ainda que mudanças endógenas sejam possíveis, acredito que conjunturas críticas serão importantes para que essa discussão deslanche. Uma regulação via Supremo pode acontecer e pode ajudar a estabelecer as balizas que necessitamos, mas penso muito a política atravessada por discursos e temo que isso possa alimentar a ideia de um Judiciário superpoderoso que se impõe à sociedade. Não acho que seja o caso a este respeito, porque o Judiciário tem ofertado contenções democráticas necessárias nesses tempos de crise. Mas idealmente, a regulação via congresso e com efetivo debate público é o cenário ideal.
Nesta perspectiva, a eleição de Trump e sua explícita relação com os proprietários das big techs representa um retrocesso? Por quê?
Acho essa aproximação muito reveladora, mas sob um ângulo que tem sido pouco discutido. Escrevi um artigo para a Folha sobre esse tema essa semana que defende a tese de que mais do que o superpoder das Big Tech, essa relação evidencia a rede de reciprocidades de que depende o exercício desse poder. Assim como Victor Nunes Leal evidenciou em Coronelismo, Enxada e Voto que o coronel não era essa figura toda poderosa, mas alguém que dependia fortemente dos governadores para exercer seu poder, as Big Tech estão nos mostrando que elas precisam da política. E justamente por isso, podemos ver a fraqueza delas. A regulação democrática, isto é, a política, é o caminho para lidar com esse superpoder. Trump fortalece a rede de reciprocidades, porque também depende dessas empresas o que nos explicita que não podemos mais fugir do debate político sobre a regulação de tecnologias se quisermos pensar numa eventual sobrevivência de democracia pelo mundo.
Por último, uma questão relativa à comunicação política. O Governo vem enfrentando dificuldades na sua comunicação digital. Parte disso, por uma incapacidade de coordenação e estratégia, mas, a meu ver, também por ter que lidar com uma linguagem tiktok que é estranha à comunicação pública que enfrenta limitações institucionais. Como você vê essa questão?
Concordo com você e sua pergunta nos devolve ao primeiro ponto. A dinâmica contemporânea da comunicação política e sua lógica algorítmica contribuem para a desinstitucionalização de práticas consolidadas, removendo fundações das instituições. Isso cria alguns paradoxos. A defesa da institucionalidade e da comunicação pública em um sentido mais solene acabam por se colocar em choque com a lógica comunicacional que se estrutura sobre uma gramática essencialmente pautada pela erosão dessas instituições. Tem tido êxito nesse paradoxo quem consegue caminhar sob o fio da navalha parodiando as instituições para reconvocar e reconstruir um tipo de poder e de autoridade no bojo de toda essa desterritorialização. Esse é o argumento de Renato Caetano que tem defendido que figuras como Trump, Milei e Bolsonaro prosperam em um terreno que valoriza o riso cético sobre as instituições, viabilizando uma reencenação de poder e autoridade em tempos de profunda descrença em relação “a tudo isso que está aí”.