Nos últimos anos, o termo “polarização política” tem sido usado com tanta frequência para abarcar uma grande variedade de fenômenos que, em certa medida, perdemos a clareza sobre o seu significado. Na imprensa, em artigos, conversas cotidianas ou pesquisas de opinião, o termo surge quase sempre como explicação do nosso comportamento político. Virou uma espécie de conceito guarda-chuva que, na melhor das hipóteses, pode estar limitando as análises ou, em muitos casos, promovendo confusão entre polarização política e afetiva.
Apesar disso, alguns analistas têm se esforçado para definir melhor esses conceitos e dimensionar o fenômeno. Em artigo publicado recentemente no jornal O Globo (“Precisamos dar voz aos invisíveis” 26/04), o pesquisador da USP Paulo Ortellado apresentou dados de um estudo que desenvolve para compreender a natureza da polarização política no Brasil. Os dados refletem discussões que tenho tido informalmente com algumas amigos. É possível falar de uma sociedade brasileira polarizada? Não. Ortellado argumenta que “a polarização política parece envolver toda a sociedade, mas o antagonismo, na verdade, é puxado por pequenas minorias, grupos ativistas de no máximo 5% da população, ladeados por segmentos ‘semiativistas’, que compõem outros 15%”.
Em outras palavras, uma minoria barulhenta, em especial com o uso de canais digitais de comunicação, tem estimulado uma percepção de que o Brasil vive uma polarização disseminada por toda a sociedade. Os achados de Ortellado demonstram que 60% da população, na verdade, passa ao largo da polarização. “Essa maioria – moderada e um pouco desinteressada de política – se torna invisível pela agitação ativista dos polos nas mídias sociais, que terminam se fazendo passar pelo todo”.
As conclusões preliminares de Ortellado estão alinhadas com outro estudo, produzido por Fuks e Marques (2022), no qual afirmam que a polarização na política apresenta concentração em certos segmentos sociais, especialmente entre os indivíduos politicamente engajados. Além disso, o fenômeno seria mais comum entre os mais interessados por política, mais participativos e com vínculos partidários que se apresentam mais extremistas, tanto na ideologia como no afeto.
Fundamentalmente, os autores concluem que a polarização no Brasil teria muito mais características de ordem afetiva e direcionada a lideranças políticas. Esses sinais começaram a aparecer em 2014, mas foi na eleição de 2018 que eles ficaram mais evidentes. Para os autores, a Bolsonaro foi ponto central para o aumento da polarização afetiva e da organização do campo da direita no país.
O que sabemos em duas décadas de polarização
Como o “problema” da polarização é complexo e envolve múltiplas camadas, trago aqui mais alguns dados para reflexão. Procurei observar como a questão da polarização se comportou ao longo de 24 anos no Brasil e, mais ainda, como a percepção desse fenômeno se distribuiu entre os diferentes governos nesse período.
Para isso, utilizei dados do Instituto V-DEM, e produzi dois gráficos da série histórica (2000 a 2024) de dois indicadores publicados no relatório de 2025. Os indicadores são interessantes porque expressam visões distintas, porém correlacionadas, do que o V-DEM chama de “polarização política” e “polarização da sociedade”. Os dois índices são produzidos a partir de questionários aplicados com especialistas, logo, com um grupo com acesso a um grande número de informações sobre o comportamento das lideranças políticas, eleitores e o contexto político do país em diferentes época.
Segundo o V-DEM, a polarização política procura compreender se a sociedade está dividida em campos antagônicos, a ponto de as divergências impactarem as relações sociais para além das discussões políticas. Em outras palavras, o instituto investigou se o apoio a diferentes lados políticos leva a um distanciamento nas interações cotidianas, como em reuniões familiares, associações civis, momentos de lazer e até mesmo nos locais de trabalho. Uma alta polarização se manifestaria, portanto, quando apoiadores de campos opostos tendem a interagir de maneira hostil, enquanto em cenários de baixa polarização essas interações seriam amigáveis.
As respostas ao questionário aplicado entre especialistas variam de 0 a 4, onde:
0 (de forma alguma): “os apoiadores de campos políticos opostos geralmente interagem de maneira amigável”;
1 (Na maioria dos casos, não): “são mais propensos a interagir de maneira amigável do que hostil”;
2 (de certa forma): “têm a mesma probabilidade de interagir de maneira amigável ou hostil”;
3 (Sim, em extensão notável): “são mais propensos a interagir de maneira hostil do que amigável”;
4 (Sim, em grande extensão): “geralmente interagem de maneira hostil”. Ou seja, quanto mais próximo de 4, mais polarizados estão os campos.
O V-DEM apresenta um segundo indicador, voltado para o ambiente digital, que mede a percepção sobre como a sociedade está mais ou menos polarizada em suas discussões online. A polarização da sociedade se refere à intensidade das divergências sobre as principais questões políticas. O conceito busca avaliar se as diferentes visões resultam em grandes confrontos ou se, apesar das opiniões diversas, há um relativo consenso sobre questões políticas. Uma forte polarização é caracterizada por sérias diferenças em quase todas as questões-chave, gerando grandes embates. Em contraste, numa sociedade sem polarização, embora existam opiniões distintas, há acordo fundamental sobre a direção das principais políticas.
0 (Polarização séria): “sérias diferenças sobre quase todas as questões-chave, resultando em grandes confrontos”;
1 (Polarização moderada): “diferenças sobre muitas questões-chave, com confrontos moderados”;
2 (Polarização média): “diferenças notáveis em cerca de metade das questões-chave, com alguns confrontos”;
3 (Polarização limitada): “diferenças em apenas algumas questões-chave, com poucos confrontos”;
4 (Sem polarização): “diferenças de opinião, mas com acordo geral sobre a direção das políticas-chave”.
A polarização segundo os períodos de governo
Como esses indicadores se comportam quando analisados por período de governo? O primeira a coisa a ser observada no primeiro gráfico é que esses dois índices apresentam correlação, isto é, apresentam comportamento equivalente ao longo do tempo. A polarização política (percepção da divisão em campos antagônicos) manteve-se estável no início da série, com média abaixo de 2 (“na maioria dos casos, não há polarização”). O indicador, contudo, começa a mudar na segunda metade do governo Dilma I, apresentando tendência de alta, com pico no governo Bolsonaro. Com a eleição de Lula III, o índice recua um pouco de 3,9 para 3,6, mantendo ainda uma média bastante elevada (“polarização em grande extensão”).
Em sentido inverso, a polarização da sociedade apresenta comportamento igualmente significativo. É estável no início da série e passa a cair na segunda metade do governo Dilma I, atingindo o nível mais crítico no fim de 2022, durante o governo Bolsonaro. Neste indicador, quanto mais próximo de 0, maior a percepção de polarização digital (menos chance de consenso sobre as questões políticas). Mas aqui temos um dado interessante. Desde a eleição de Lula em 2022, o índice que era de 0,06 (polarização máxima) subiu para 1,2, indicando maior distensionamento nas discussões digitais. A média de 2024 aproxima-se do patamar de 2014, com um aumento mais expressivo que a queda no índice de polarização política.
Recuperação?
O segundo gráfico apresenta o que chamei de “fases da polarização” no Brasil: um período de estabilidade (2000-2011), acirramento (2012-2015), ruptura clara entre grupos antagônicos (2016-2022) e, atualmente, uma interrogação sobre possível retorno à estabilidade (2023 em diante). Claramente, a eleição de 2014, no qual Dilma Rousseff foi reconduzida ao cargo, diante de uma campanha fortemente polarizada com o então candidato do PSDB, Aécio Neve, parece ter ser o ponto de virada da polarização no Brasil. Esse comportamento se manteve, com a impeachment de Dilma, e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, quando entramos na fase mais profunda da polarização.
Esses dados ilustram aquilo que Fuks e Marques haviam sugerido, qual seja, os componentes contextuais são elementos importante para entendermos a polarização no Brasil. “Como a recente reorganização da direita nos leva a supor, os indícios de polarização política revelam um fenômeno incipiente, assimétrico e concentrado no último período eleitoral. Além disso, (os dados) apontam como uma das suas expressões mais importantes, a polarização afetiva em relação às lideranças políticas”. Em outras palavras, os autores argumentam que a polarização afetiva, muito concentrada nas percepções sobre lideranças políticas, em especial no campo da direita, seriam as explicações para o impulso à polarização. E aqui temos, portanto, uma questão em aberto. O cenário iniciado a partir de 2022, com a eleição de Lula e a consequente inelegibilidade de Bolsonaro, principal líder do campo da direita, redefine o contexto político brasileiro. Esse curto período coincide com a mudança de direção da polarização da sociedade, conforme o V-DEM capturou. No entanto, ainda sem uma inflexão mais robusta na polarização política. A dúvida é: estaríamos iniciando, finalmente, uma trajetória de redução da polarização no país?
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Fábio Vasconcellos
Doutor em Ciência Política pelo IESP (2013) e mestre em Comunicação Social pela UERJ (2008). Professor associado da Faculdade de Comunicação UERJ. Temas de interesse: Comportamento Eleitoral; Comunicação Política; Eleições; Opinião Pública; Analise de Dados.